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O Rei

  • Foto do escritor: Monica Dominici
    Monica Dominici
  • 30 de jan. de 2024
  • 10 min de leitura

Atualizado: 3 de fev. de 2024

Ele era amado, era o rei, e reis a gente ama e pronto.

 

Ditava regras, moda, penteados, costumes, esquisitices... se comia ratos, todos queriam ratos no jantar, se usava sapatos em pés trocados todos o copiavam sem pestanejar.

 

Sua corte, seus súditos, seus amigos, seus inimigos, todos o copiavam, o cortejavam, o louvavam, o invejavam.

 

Não havia um só cidadão em seu castelo que não fosse apaixonado pela sua imagem, sua estética, sua vida, sua pessoa. Era lindo, forte, inteligente, culto, grande estrategista.

Ele sabia o que pensavam dele e se gabava, aproveitava sua fama de garanhão para comer todas as gatinhas, os gatinhos, os cães, as cadelas, as potras. Tudo que tivesse com vontade de traçar, traçava e cá pra nós, transar com ele era um título importantíssimo na carreira de qualquer um, um deleite, todos enlouqueciam... Homem viril, cheiroso, ombros largos, pernas fortes, braços torneados, glúteos então... melhor nem comentar...

 

Eunucos cegos tocavam harpas em seus bacanais... bebia os vinhos vindos das regiões próximas, assim como se banhavam nos azeites das mais puras oliveiras, pétalas de rosas faziam seu caminho, lençóis de seda vindos da China com essência de Ylang Ylang no ar.

 

O sol aparecia diariamente sorridente para ele. Era um homem sem sofrimentos, jamais experimentara a tristeza, nunca sentiu em sua carne a dor ou em seu peito a mágoa.

 

Sempre tinha alguém ao seu lado, alguém que ele mesmo havia escolhido para lhe fazer companhia. Faziam cafunés em seus pés, massagens em suas costas, ouviam suas canções (sim, além de tudo ele cantava, e bem!).

 

Com o passar do tempo aquilo que o divertia, que o seduzia, passou a virar arroz com feijão e queria algo mais, algo que não conseguia descrever.

Certa noite sentiu-se cansado de tanta algazarra, resolveu não querer ninguém ao seu lado, queria dormir de roncar, sozinho. Entrou em seus aposentos, impedindo até a entrada até de seus próximos serviçais, jogou seu manto real na poltrona vermelha, e continuou a se despir sozinho, até chegar no sapato bordado de diamantes, tacou tudo no chão e pulou em sua cama como um menino feliz.

 

Acordou no meio da madrugada e teve uma ideia. Se vestiu como um mendigo, amarrou uma corda e desceu pela janela sem que ninguém o visse.

Passou pelo meio dos cavalos, se pendurou em uma carruagem e saiu pelos portões do palácio pela primeira vez em toda sua vida.

 

Olhou para alguém, porém foi ignorado, olhou para outro e teve um olhar de desprezo... achou engraçado e ao mesmo tempo estranho...

 

Assistiu como telespectador coisas inimagináveis do lado de fora do seu mundo.

A sujeira, a dor, a doença, o tormento, o suplício, assim como viu a gentileza, o amor, o carinho, a ternura, o respeito voluntário. Jamais conhecera algo assim, nem um, nem outro... Interessante!

 

Amanheceu. Sentou-se no chão, quieto e observou as vidas, vidas mundanas, vidas rasteiras, vidas desprovidas de conforto, vidas de trabalho duro, de sonhos praticamente impossíveis.

 

Enquanto isso no castelo o maior alvoroço, todos esperando que o rei se levantasse e permitisse suas entradas em seus aposentos, mas a porta continuava fechada no quarto escuro. “Será que deveriam arromba-la? Será que o rei estava doente? Será que estava tão cansado assim?” Resolveram esperar, afinal não se podia contradizer uma ordem real, ainda mais vinda deste rei!

 

Uma moça desgrenhada sentou-se ao seu lado, descascou uma banana, olhou para ele com olhar de dó e lhe ofereceu um pedaço...

Ele olhou para ela com assombro, jamais tinha visto alguém tão desleixada e linda ao mesmo tempo. Aceitou o naco, agradeceu boquiaberto...

Ela perguntou seu nome, ele respondeu com outra pergunta num tom áspero em um ato falho, falhíssimo:

- Não me reconhece? Sou o rei!

Ela riu muito... Ele não.

Ele perguntou seu nome e ela respondeu: -Não me reconhece? Sou a rainha!

Os dois riram.

 

A moça levantou-se e se foi, ele foi atrás. Ela entrou em uma choça, pegou umas coisas e foi para o rio... ele olhou para aquele lugar minúsculo e nem lhe passara pela cabeça que alguém poderia viver naquilo.

 

Ela passou tempos ali no rio, cantando e lavando roupas, e ele observando em êxtase.

 

Hora de voltar, e voltou para seu palácio... subiu pela sua corda, vestiu seu pijama e finalmente abriu a porta de seu quarto onde uma multidão o esperava ansiosamente.

 

- Majestade, que maravilha vê-lo tão luminoso!

Toda bajulação de seu palácio lhe parecia agora muito insincera.

 

“Puts, lá vem toda aquela ladainha outra vez, gente chata!”, o rei sem o menor saco pra tamanha chatice fechou a porta na cara de todos e disse: - Me esqueçam por hoje!

O ohhhhhh foi geral, mas obviamente o obedeceram.

 

Algo tinha acontecido naquele dia, seus moldes pareciam não ter mais sentido algum. Queria fazer parte daquilo que vivenciou. Sentiu que aquilo que tinha visto era legítimo.

 

Dia sim, dia não escapava para a cidade com diferentes disfarces. Ninguém o reconhecia e isso, lá no seu íntimo, realmente o tirava do sério.

 

Rei agoniado, uma agonia só! Chegou a chorar aos prantos, de soluçar.

Dia vai, dia vem e ele encafifado com sua transparência, com sua invisibilidade....

  

Jamais abrira um livro sequer, ele não precisava disso, todos diziam que ele era impressionantemente inteligente, culto, esperto, o melhor de todos e o problema é que ele acreditou, acreditou piamente, porém agora sua certeza sobre sua beleza e sua inteligência foram ficando cada vez mais incertas.

 

Passou a ler, ler, ler, comia livros de filosofia, biologia, história, geografia, sobre religiões, artes, música, literatura, gastronomia, estudava línguas estrangeiras, tentava encontrar respostas à suas urgentes questões em todos os lugares, em todos os momentos, e não gostava mais daquelas festas, e não queria mais aqueles lambe-botas ao seu lado como sanguessugas, e não suportava mais não conhecer a vida que lia nos livros os quais até então a única utilidade era a de enfeitar suas milhares de estantes de madeira maciça.

A cada página virada sua única convicção era a de que vivera hipnotizado por si mesmo, acreditou em suas próprias crenças, se fechou numa vida medíocre e perdeu a conexão com a realidade do mundo.

 

Acreditou que a única vida possível era a que conhecia e teve raiva de si por jamais ter se questionado se havia algo além daqueles malditos portões. Poderia jurar que sabia oprimir quem quisesse, mas o grande oprimido acabou sendo ele mesmo.

 

A cólera o abateu fortemente, caiu doente em seu leito, sentia frio, ódio, tremia de dor, porém não soltava seus livros, suas enciclopédias... Parecia ter acordado de um pesadelo tão profundo quanto as profundezas do mar. Estivera no escuro por muito tempo e por mais riqueza que tivesse não conseguiria comprar seu tempo de volta.

 

Do lado de fora da porta de seu quarto a multidão enlouquecia. O que estaria acontecendo com o rei? Não queria mais festas, nem bacanais. A cada abertura da porta, milhares de olhos atentos tentavam entender o que estava acontecendo. Mulheres nuas tentavam seduzi-lo fazendo sexo animal com homens de falos caprichados, mas o rei estava desatento para tudo e todos.

 

Os dias foram passando e sua saúde começou a melhorar, seu estado emocional estava mais forte, precisava reagir com urgência, não poderia perder mais tempo. Compreendera que as pessoas que tinha visto além dos muros eram parecidas com aquelas que havia lido em suas páginas desbotadas com cheiro de naftalina.

 

Sentia desejo doloroso de viver ao redor destas pessoas que sorriam sem dentes, sem motivo, sem comida, sem vinho, sem orgias, sem interesse, com os pés descalços, com amizade, gratidão e liberdade.

 

Seus pensamentos que estivera como uma caixa de quebra-cabeças de cinco mil peças jogadas ao chão, começou lentamente a formar novos nexos, novas lógicas e era dessa nova coerência que pretendia viver.

 

Percebeu que conhecia de perto a cobiça, a ganância, a inveja, a bajulação, a mentira, nada além disso.

Notou que a felicidade que sentiu até então, não era de fato felicidade, e sim pequenos desejos efêmeros realizados pelos outros, enquanto ele entorpecido pela sua própria arrogância e vaidade levitara embriagado.

 

Estava ainda pálido, abatido, fraco, mas era chegada a hora de se aventurar pelas cordas escondidas novamente. Logo após o jantar onde todos se embriagavam e riam sei lá do que e sei lá por que, ele se despediu como de costume, trancou-se em seus aposentos, trocou suas roupas e lá se foi novamente.

 

Passou a noite perambulando entre as ruas estreitas, sujas, feias até cair num sono profundo no meio do caminho. Dormiu de sonhar, sonhos de amor. Acordou no susto da realidade. Em seu colo um menino também dormia. Em espanto, não se moveu para não acordar aquele que tinha um sorriso nos lábios. Parecia alguém tão indefeso, pequeno, magro, abandonado.

 

Menino acordou e agradeceu pelo seu colo macio, nunca tivera a chance de se deitar em uma almofada tão gostosa como a sua barriga.

 

Rei visivelmente comovido, quis saber de sua vida. Menino vivo, sagaz, sabia de tudo, conhecia todos, vivia livre pelas ruas, sentia falta de um pai, não o conhecera, mas a mãe fazia o papel dos dois. Estava na rua, pois a mãe estava doente na casa de uma curandeira, passou mal, caiu no chão, ele gritou até a curandeira ouvir, e ela ouviu rápido...

 

-Parece que vai ficar boa, mas só volto pra casa com ela, caso contrário fico aqui, na porta da curandeira.

-A casa dela é essa? Você não pode entrar?

-Não me deixam, posso estragar a cura. Preciso ficar de guardião da casa.

 

Rei deu a mão para o menino e pela primeira vez se viu de mãos dadas a alguém, e se sentiu feliz, de certa maneira estava completo.

Conversaram, o rei sacou de seu bolso um pedaço de pão e deu ao menino. Menino fez questão de dividir com o rei.

Ficaram amigos, foi rápido, foi sem proveito ou vantagem. Rei sentiu uma brisa no rosto e uma alegria no coração.

 

Durante vários dias foi e voltou, foi e voltou e em cada ida e vinda mais crescia essa amizade.

Menino astuto, fazia mil perguntas ao mesmo tempo, porém rei também astuto inventava estórias para não contar-lhe a verdade, não tão cedo. Menino seguia na porta da curandeira até o dia que finalmente a porta se abriu e a mãe saiu cheia de saúde lá de dentro. Rei não podia acreditar no que via, se encapuzou e saiu de fininho. Não queria ser visto por ela.

Menino procurou o novo amigo, mas esse já não estava mais lá.

 

A corte sucumbindo a ausência e estranheza de sua majestade, tentava de tudo para lhe chamar a atenção e quanto mais faziam mais o rei os achava tolos. Sua arte era ordinária, seus assuntos insuportáveis, seu modo de vida mesquinho, raso e vazio. Rei de saco cheio, cheíssimo, lotado!

 

Não conseguiria encontrar mais seu novo amigo a noite, estaria em casa com sua mãe. Agora teria que se arriscar a fugir durante o dia. Foi o que fez. Em uma ação arriscada, sem que ninguém percebesse foi caminhar pelo jardim e acabou escapando sem que ninguém o visse.

 

Encontrar seu pequeno amigo era uma felicidade sem fim. Conversavam sobre coisas mundanas, cotidianas, mas muito mais que o menino, o rei aprendia novidades a cada dia. Ficava encantado ao notar que foram as dificuldades que seu pequeno amigo passara que lhe fizeram conhecer o mundo e crescer forte. Eram as amarguras que a vida havia lhe apresentado que fizeram com que ele aprendesse a se virar e a não reclamar por pouco.

 

Certo dia, o menino perguntou: - O que você acha do rei?

O rei fez uma pausa e respondeu: - Um prisioneiro em uma prisão sem grades. Um homem enfraquecido pela sua arrogância, pela sua miopia, mas ouvi dizer que ele está mudando. E fico muito feliz se conseguir.

-       Me disseram que ele é muito bonito, inteligente.

-       Isso não é verdade, eu já o vi, ele é feio e ignorante.

-       Você está é com inveja dele.

-       Não estou não, nem um pouco. Quero ser tudo nesta vida, mas não quero ser tolo como ele.

-       Mas ele é rei, e você é só um sem eira nem beira.

-       Pode parecer estranho para você, mas não acredito que ele possa ser feliz, sem sair de seus muros, sem viver a vida verdadeira, sem participar e se entregar aos amigos. Provavelmente sua arrogância lhe proíbe de conhecer a verdadeira amizade.

-       Até parece que rei não tem amigos, deve estar cheio de gente querendo brincar com ele.

-       Ah sim, concordo que deva estar rodeado de pessoas querendo brincar com ele, mas isso não é exatamente amizade. Amizade é quando você confia tanto na pessoa que não tem medo de ser traído, pode fazer confidencias, pode ficar longe por muito tempo que o carinho sempre irá existir. Amizade é querer bem ao outro sempre. É ter seus pensamentos e suas ações voltadas para o bem. Muitas vezes não pensam igual, mas isso não é ruim, pois a gente aprende muito com pessoas diferentes, mas é necessário ter sempre respeito, entende?

-       Sim, acho que sim... Já vou para casa, minha mãe deve estar chegando.

 

Rei participava mais e mais da vida da cidade, varria ruas, juntava o lixo, ajudava os enfermos, chegou a trabalhar na taberna central. Conversava com todos, bêbados, prostitutas, homens incompletos, mulheres ressentidas, ali tinha de tudo, e todos falavam abertamente de seus anseios. Entendia seus problemas, aflições, suas faltas, seus amores, seus desejos, suas paixões, seus sonhos. Percebeu que a falta não era exclusivamente monetária, mas de todas as ordens, afinal são humanos.

 

Rei que acreditara por tanto tempo ser bonito e inteligente percebeu que o discurso pronto dos outros era apenas manobra e manobra calculada, cálculo perverso, onde um é mantido ignorante enquanto outros o consomem vivo.

 

Gozavam de uma vida de proveitos nefastos enquanto o rei ignorante iludido morria lentamente cheirando gás. Foi procurar o que tinha perdido, trabalhou como um guerreiro para se encontrar e entender seus novos sonhos que nem ele próprio sabia nomear, não fazia parte de seu repertório, não tinha conhecimento do que estaria por vir, mas não teve medo, muito pelo contrário, sentiu um frescor imensurável em seu peito, em sua pele.

 

Numa destas escapadas, avistou a moça dona de seu coração, sentou-se na sarjeta e rezou para que ela se aproximasse. E ela veio... sem pressa. Algo a atraia àquele que um dia havia desprezado.

Ele estava sujo, imundo, ela sentiu vontade de cuidar daquele ser estranho.

Sentou-se ao seu lado, descascou outra banana e lhe ofereceu um pedaço... ele aceitou... Viraram amigos...

 

Ela o convidou para almoçar com sua família, ele logo aceitou. O menino quando o viu chegar enlouqueceu!

Ali sentado naquela mesa simples, com aquelas pessoas saboreou a melhor comida de toda sua vida. Ali sentado naquele pedaço de troco de árvore passou os momentos mais alegres de sua existência. Jogaram conversa fora e o tempo passou que não notaram.

 

Seus dias tinham agora cheiro de esperança, acordava sorrindo e sonhava sonhos coloridos acordado. Encontrou com a vida pela primeira vez e ficou terrivelmente fascinado por ela. Sentiu-se bonito novamente, sentiu-se forte, capaz.

 

Encontros ficaram mais longos até o dia do beijo gostoso de baixo da árvore extraordinária.

Ele a pediu em casamento, ela prontamente aceitou! Ficou apenas preocupada onde o poria para dormir naquele espaço tão apertado, mas dariam um jeito. E deram...

 

Os muros do castelo foram destruídos! A festa do casamento foi linda...

Sim, ele era o Rei, e ela era a Rainha.

 

Não, não foram felizes para sempre, pois essa estória é verdadeira, e felicidade eterna não existe, foram muito felizes alguns dias e em outros se odiavam como cães e gatos. Porém lá no fundo, bem lá no fundinho eu digo, foram feitos um para o outro. Tiveram vários filhos que brincavam de bola descalços pelas ruas da cidade.

29/09/16

 


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